sábado, 28 de setembro de 2013

A PAPISA JOANA

A “PAPISA” JOANA



A "PAPISA" JOANA



Há quem julgue que na série dos Papas hou­ve uma mulher chamada "a Papisa Joana". Esta versão vem à tona em debates e periódicos, em­bora não se saiba definir exatamente o perfil histó­rico dessa figura. Eis por que será mais detidamen­te considerada nas páginas subseqüentes.


1: A estória


Nos debates concernentes à Papisa Joana são evocados onze textos ou fontes escritas, que se escalonam entre os anos de 886 e 1279. Esses onze textos se reduzem a duas famílias de docu­mentos: uma família é a da Chronica Universalis Mettensis, devida ao dominicano João de Mailly e redigida por volta de 1250. A outra família é a do Chronicon Pontificum et Imperatorum, documento confeccionado pelo frade dominicano Martinho de Tropau, dito "Polono" († 1279). Os relatos da estória encontrados em documentos mais antigos do que os dois atrás citados são devidos a interpolações posteriores ao século. XIII (interpolações, pois, tardias, feitas em documentos dos séculos IX - XII).
Que dizem as duas fontes sabre a Papisa Joana?

1) A recensão da Chronica Universalis Mettensis refere a seguinte:
Em Roma, uma mulher simulou o sexo mas­culino; e, muita inteligente como era, veio a ser notário da Cúria pontifícia, Cardeal e Papa. Um belo dia, tendo montado a cavalo, foi acometida de da­res de parto. A justiça de Roma então a condenou a ser amarrada pelos pés ao rabo de um cavalo, que a arrastou meia-légua de distância, enquanto o povo a apedrejava. Foi sepultada no lugar mes­mo em que morreu.

Um cronista posterior, Estevão de Bourbon, acrescentou dois traços a essa narrativa: Joana fora ter a Roma (a crônica anterior nada dizia sabre a origem da "heroína"), e se tornara Cardeal e Papa com o auxílio do demônio..

Posteriormente, um cronista de Erfurt obser­vou, em acréscimo, que Joana era uma bela mu­lher; também modificou o papel do demônio, dizen­do que este denunciara num consistório que Joana estava grávida.
A Crônica de Metz coloca tal episódio lago após o pontificado do Papa Vítor III († 1087). Este­vão de Bourbon diz que acorreu por volta de 1100, após a morte de Urbano II (1099), ao passo que o cronista de Erfurt retrocede até 915, depois do govemo de Sérgio III († 914)!

2) A recensão de Martinho Polono é mais com­plexa do que a anterior.

Refere que João da Inglaterra, nascido em Mogúncia (Alemanha), ocupou a cátedra papal du­rante dois anos, sete meses e quatro dias. Era uma mulher. Jovem, fora por seu amante levada, em trajes masculinos, para Atenas, onde granjeou grande erudição.. Transferiu-se para Roma, onde ensinou o. "trivium" (o "trivium" eram as três matérias lingüísticas da Idade Média: gramática, retórica, dialética), tendo entre os seus ouvintes e discípulos grandes mestres da época.

Já que gozava de boa reputação e elevado saber, foi elei­ta Papisa (ou pretensamente Papa) por consentimento de todos os eleitores, com o nome de João Anglico. Grávida, ela se dirigia certa vez de São Pedro à basílica do Latrão; entre o Coliseu e a igreja de São Clemente, deu à luz, morreu e foi sepulta­da no mesmo lugar. Isto tudo se terá verificado após o pontificado de Leão IV († 855). Todavia um interpolador, Otão de Freising, coloca a eleição da Papisa Joana em 705!

A versão de Martinho Polono foi modificada pelo autor de um manuscrito do século XIV (publi­cado por Doellinger em Die Papstfabeln des Mittelalters, Munique 1863, p. 503). Tal autor põe em foco uma jovem chamada Glância, oriunda não de Mogúncia, mas da Tessália, a qual se terá tor­nado Papa, não, porém, com nome de Joana, e, sim, com o de Jutta.

Nos séculos XIV e XV a estória gozava de crédito mais ou menos geral: no domo de Sena, por exemplo, em cerca de 1400, foram erguidos os bustos dos Papas, entre os quais o da Papisa Joana. No Concílio de Constança (1414-1418), o herege João Hus citou a Papisa Joana sem sofrer contestação alguma. Humanistas e adversários da Igreja, principalmente após o cisma protestante (século XVI), muito exploraram a narrativa, multi­plicando livros e folhetos que propagavam a estó­ria.


 Deve-se ainda notar que, com o decorrer do tempo, a lenda da Papisa Joana foi acrescida de outra, não menos repugnante. - Com efeito, forja­ram-se documentos segundo os quais os Cardeais da S. Igreja, receando que fosse de novo eleita uma mulher Papisa, recorriam a uma cadeira de assen­to perfurado a fim de se assegurar do sexo do can­didato eleito. Tal cadeira era chamada "stercoraria" (palavra que provém de stercus, esterco).
Esta outra narrativa se encontra nos escritos de autores medievais, dos quais alguns protestam contra ela. Tenham-se em vista Godofredo de Courlon, em cerca de 1295; o dominicano Roberto de Uzes († 1296); Tiago Angeli de Scarpia, em 1400 (o qual contradiz à insana fábula); Félix Hemmerlin († 1460)...


2: A denúncia da falsidade


Apesar de leves dúvidas sobre a veracidade dessas estórias, dúvidas proferidas desde o sécu­lo XIII, somente a partir de meados do século XVI se reconheceu o caráter lendário das mesmas. O século XVI, com a Renascença, foi justamente o século da crítica aos falsos documentos da histó­ria anterior.


O primeiro a denunciar a falsidade da estória de Joana foi João Thurmaier, cognominado "Aventino" (oriundo de Abensberg na Bavária), fa­lecido em 1534, e autor de Annales Boiorum. Esse escritor era publicamente católico, mas ocultamente luterano. A sinceridade, porém, levava-o a reco­nhecer a fraude da lenda.

Seguiu-se Onófrio Panvínio († 1568), que es­creveu anotações sobre a vida dos Papas publicadas em Veneza em 1557.
A refutação da lenda foi cabalmente empre­endida por Florimundo de Remond, que escreveu o livro Erreur populaire de Ia papesse Jeanne, editado em Paris (1558), Bordéus (1592, 1595) e Lião (1595). O autor mostrava a impossibilidade de tal "estória" e as contradições das diversas recensões. Notem-se ainda o autor protestante D. Blondel ("Familier esclaircissement de Ia question, si une femme a esté assise au siege papal de Rome entre Léon IV et Benoit III". Amsterdam 1647) e o erudito Ignaz von Doellinger (Die Papstfabeln das Mittelalters. Stuttgart 1890), o qual não era muito amigo do Papado, pois se separou de Roma por não querer reconhecer a infalibilidade pontifícia definida em 1870 pelo Concílio do Vaticano I.


As razões pelas quais não se admite mais a estória da Papisa Joana, são:


a) as incertezas e vacilações das diversas ver­sões, principalmente ao assinalarem a data do pretenso episódio:

b) o fato de que até meados do século XIII a extraordinária e interessante estória da Papisa Joana (que teria vivido no período dos séculos IX, X, XI) é totalmente ignorada pelos cronistas medi­evais. Os primeiros que a referem, são o dominicano João de Mailly na sua Chronica Universalis Mettensis redigida por volta de 1250, e seu confrade Martinho Polono († 1279), autor de Chronicon Pontificum et Imperatorum. Averi­guou-se que os relatos da lenda encontrados em documentos mais antigos do que estes foram in­seridos aí depois do século XIII;

c) a série dos Papas, como hoje é conhecida, não admite interrupção entre Leão IV e Bento III (século IX), como tão pouco a comporta entre Pon­tífices dos séculos X/XI. - Com efeito, Leão IV morreu aos 17 de julho de 855 e Bento III foi eleito antes do fim de julho de 855. Por conseguinte, entre Leão IV e Bento III é impossível intercalar o pontificado da pretensa Papisa, que teria durado dois anos, sete meses (ou cinco meses ou um mês, segundo os diversos narradores) e quatro dias. A mesma impossibilidade se verifica, caso se queira transferir o "pontificado" de Joana para outra fase dos séculos VII/XI; não há brecha na série dos Papas para intercalar uma Papisa.


3: Como explicar...?


1. Julga-se que a estória é uma alusão às tris­tes condições em que se achava o Papado no sé­culo X: vários Pontífices caíram então sob a influ­ência de três mulheres prepotentes em Roma: Teodora, esposa de Teofilacto, e suas filhas Teodora e Marócia. Na mesma época houve sete Papas com o nome de João: João IX (898-900), João X (914-929), João XI (931-935), João XII (955­964), João XIII (965-972), João XIV (983-984), João XV (985-996), sendo que a respeito de João XI escreveu um cronista seu contemporâneo:

"Foi subjugado em Roma pela prepotência de uma mu­lher" (Bento de S. André de Sorate, Chronicon em Monumenta Germaniae Histórica III 714).

Tal notícia por si só podia bastar para fazer crer que realmente uma mulher ocupara a Sé de Pedro. Podia também sugerir o nome de Joana para essa mulher, pois a mulher de que fala o cronista Bento de S. André era tida como familiar de João XI (era a mãe deste Papa); ora "muito naturalmente" uma mulher aparentada do Papa João deveria chamar­-se Joana! Compreende-se, pois, que o século X, fase difícil da história do papado, tenha sido ilus­trado (ou caricaturado) de maneira muito eloqüen­te pela narrativa fictícia de que uma mulher che­gou a subir ao trono pontifício.

2. Em particular, a lenda da cadeira estercorária explica-se do seguinte modo:



Uma vez eleito o Papa, os Cardeais e o povo iam à basílica de São João do Latrão. O Pontífice se sentava numa cadeira de mármore colocada sob o pórtico da igreja; os dois Cardeais mais antigos o sustentavam pelos braços e o levantavam, ao canto da antífona "Suscitans a terra inopem et de stercore erigens pauperem. - Levantas da terra o indigente e do esterco ergues o pobre" (Salmo 112,7). Em conseqüência, tal cadeira se chamava "estercorária" (o canto sugeria o adjetivo...) A ca­deira não possuía assento perfurado. A cerimônia tinha seu simbolismo claramente enunciado pela antífona: apresentava o Papa como o pobre servi­dor que Deus se dignava de exaltar ao pontificado.
A seguir, o Pontífice era levado ao batistério do Latrão. Sentava-se sobre uma cátedra de Porfírio e recebia as chaves da basílica, sinal de suas fa­culdades pastorais. Depois, sentado sobre outra cadeira de Porfírio, devolvia as chaves. Essas duas cadeiras de Porfírio tinham assento perfurado; eram cadeiras antigas, que haviam servido aos banhos dos romanos e que eram utilizadas em tal cerimô­nia papal não por causa da sua forma, mas por causa do respectivo valor. Ora a lenda confundiu esses diversos elementos, imaginando a cadeira estercorária como cadeira de assento perfurado e associando-a a estória da Papisa Joana.

3. De resto, a lenda foi reforçada pela exis­tência de uma estátua de mulher com criança nas mãos, que na Idade Média se achava junto à igreja de São Clemente em Roma. Essa estátua seria, conforme os cronistas medievais, a da Papisa Joana; estaria acompanhada de uma inscrição, da qual quatro variantes nos são referidas pelos his­toriadores da Idade Média:

"Parce pater patrum papissae predito partum".

"Parce pater patrum papissae prodere partum".

"Papa pater patrum papissae pandito partum".

"Papa pater patrum peperit papissa papellum".


Ora os arqueólogos admitem, seja a estátua mencionada a que se encontra hoje no Museu Chiaramonti de Roma; seria uma estátua de ori­gem pagã a representar talvez Juno que amamen­ta Hércules.

As diversas formas da inscrição acima pare­cem não ser mais do que tentativas medievais para reconstituir uma frase fragmentária assim encon­trada ao pé dessa estátua de origem pagã:


P... PATER PATRUM P P P


Sabe-se que Pater Patrum era o título carac­terístico dos sacerdotes de Mitra (justamente de­baixo da igreja de São Clemente em Roma foi en­contrado grandioso santuário de Mitra). Mais ain­da: sabe-se que a abreviação P P P é freqüente na epigrafia latina, significando muitas vezes propria pecunia posuit, ou seja, construiu à custa pró­pria. Donde se conclui com verossimilhança que a "estátua da Papisa Joana" não é senão uma efígie em uso no culto de Mitra, custeada e colocada no santuário respectivo pelo sacerdote pagão P... (tal­vez Papinus) em inícios da era cristã. A inscrição abreviada e mutilada pela injúria dos tempos, pres­tando-se a interpretações diversas, teria dado lu­gar às conjeturas dos poetas medievais que corro­boravam a lenda da Papisa Joana.



Nenhum comentário: